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osso | julia amaral

o osso não derrete nunca. aguenta muito. quando enterrado fossiliza ou se dissolve esfarelado. no fogo o osso virá pó, um pó fino.

corpos queimados. uma fogueira de ossos. uma fogueira com pilhas de ossos. uma fogueira com pilhas de livros e desenhos. a multiplicidade que é a ossada. uma ossada inteira de um pássaro. um enxame. uma ninhada. uma matilha. ovos de lagartixa.

o povo yanomami faz farinha com os ossos queimados dos parentes que morrem. a forma como eles lidam com a continuidade da presença dos antepassados é muito diferente da nossa. para os yanomami é de extrema importância o ritual relativo aos mortos e aos restos mortais. dão o nome de matihi a diversos valores de grande importância na vida, como as cinzas dos mortos, por exemplo. conforme conta Davi Kopenawa e Bruce Albert, os yanomami não enterram seus mortos, as cinzas dos ossos dos mortos são ingeridas com mingau de banana-da-terra.

comer os restos dos parentes, comer os ossos de minha avó.

quando minha filha nasceu, eu queria comer nossa placenta, mas não me deixaram. a violência moral é tão forte quanto um ciclone bomba: num solavanco, te chacoalha e te joga com força contra o chão, espatifada. como uma rã atropelada.

quando entrei no doutorado fiz um livro de rãs. achei e coletei três rãs atropeladas. achatadas, finas como uma folha, atropeladas e secas. confeccionei um livro com elas. costurei seus corpos com linha e fiz o livro-rã. não é um livro sobre rãs nem sobre a morte das rãs. a própria morte-rã. atropelada, com o corpo deformado, seca, sem volume. pele folha. folha vazia que não é em branco.