narrativa

achados

Não deixa de ser assombroso que os livros abriguem coisas para além dos seus textos e imagens. Que funcione como uma espécie de continente para tudo aquilo que um leitor achar justo e adequado antepor às suas páginas. Aqueles que tem o hábito de adquirir livros usados, certamente já se deparam com um desses objetos. Entre as páginas, eles têm a curiosa capacidade de nos fazer ver que tudo aquilo que lhes diz respeito [textos e imagens] pertencem aos livros de uma maneira bastante curiosa. Que a sua superfície se assemelha a desse estranho órgão cuja natureza e extensão torna sempre difícil identificá-lo como tal: a pele humana.

Em Sebo [2007], Fábio Morais e Marilá Dardot trouxeram para a página do livro uma parte daquilo que encontraram no interior dos volumes que chegaram às suas mãos: notas fiscais, bilhetes, canhotos, fotografias, cartões de visitas…

O resultado é de difícil descrição. Somos levados a ver os limites do objeto livro. E por um instante a frase de Mallarmé nos parece quase um truísmo: ‘tudo existe para acabar em um livro’. [Não porque o livro seja um destino ideal, mas porque o livro a tudo se abre.] E as considerações de Michel Foucault tomam feições quase literais: “Por mais que o livro se apresente como um objeto que se tem na mão; por mais que ele se reduz ao pequeno paralelepípedo que o encerra: sua unidade é variável e relativa. Assim que a questionamos, ela perde sua evidência; não se indica a si mesma, só se constrói a partir de um campo complexo de discursos.”

Foucault que já havia se perguntado sobre o lugar de uma nota de lavanderia na obra de um autor. “Quando se pretende publicar, por exemplo, as obras de Nietzsche, onde é preciso parar? É preciso publicar tudo, certamente, mas o que quer dizer esse ‘tudo’? Tudo o que o próprio Nietzsche publicou, certamente. Os rascunhos das suas obras? Evidentemente. Os projetos dos aforismos? Sim. Da mesma forma as rasuras, as notas nas cadernetas? Sim. Mas quando, no interior de uma caderneta repleta de aforismos, encontra-se uma referência, a indicação de um encontro ou de um endereço, uma nota de lavanderia: obra ou não? Mas por que não?”

Das muitas coisas que encontrei dentro de livros, duas me são bastante caras. A primeira é uma foto do escritor Paulo Leminski. A encontrei por acaso folheando um livro [creio que de Décio Pignatari] dentro de um sebo no centro de São Paulo. Acabei levando a foto e deixando o livro, o que me gerou uma estranha sensação. Lembro com clareza dos movimentos que fiz para ocultá-la do livreiro e da incapacidade que tive em decidir se se tratava de um roubo ou de alguma e da incapacidade que tive em decidir se se tratava de um roubo ou de alguma outra coisa que eu não sabia definir.

A segunda é uma espécie de obituário de Hélio Oiticica. Foi publicada pelo Pasquim em 1980. [Quem o recortou fez questão de anotar a data a caneta.] O encontrei em meio a um livro de depoimentos organizado por Ferreira Gullar. O texto de Norma Pereira Rego é um preciosidade. Vai da cena do seu velório [apenas umas cem pessoas] à sua condição financeira [viveu sempre duríssimo]. Fechando com uma frase [de efeito] incontornável: [Se algum dia existiu no Brasil um artista de vanguarda ele se chamou Hélio Oiticica. Saibam todos: não existe mais.]

O elo entre esses dois recortes me veio algum tempo depois, através de um exemplar de 1997 da revista O Carioca [editada por Waly Salomão e Chacal]. Nesse exemplar, há [o que parece ser] um obituário do poeta Paulo Leminski. Um pequeno texto no qual Ademir Assunção critica a tentativa de separar a obra do Leminski pirado do Leminski rigoroso. Algo que, segundo ele, teria sido feito em relação à obra de Hélio Oiticica.